And when, alas! Our brains are gone,
What nobler substitute than wine?
LORD BYRON
Eu queria deixar aquela vida de perdição. Mas eu realmente tinha algo mais forte do que eu. Eu saíra daquela quarto deixando para trás vinhos e mulheres, ficou exatamente como sempre o deixo, as garrafas vazias, o tapete manchado, as taças caídas e as mulheres também, naquele sono profundo, o seio palpitando, lânguido e sereno. A janela aberta fazia o vento de uma noite fria entrar por ela, a cortina leve e branca apagou as velas derrubando os castiçais. E eu virara as costas sem jamais me importar. Caminhei no escuro deserto daquela noite, nenhum ruído me fazia companhia, exceto por um pássaro que acabara de pousar em uma enorme árvore em frente ao cemitério. Continuei andando até chegar na pensão.
Lá, deitei a cabeça no travesseiro sem culpa e adormeci pensando em um avalanche de coisas que não sei explicar, era confuso demais. O rosto perfeito daquela virgem que me fez sorrir na juventude não parava de vir a minha cabeça. Realmente o destino não foi generoso comigo.
A medida que o sono ficava mais profundo, que minha respiração ficava mais lenta, alguém gritava pelo meu nome. Uma mulher. Um tom desesperador, arrepiava minhas entranhas, porém a voz era muito familiar para mim. De onde eu a conhecia? Tentei fazer um resgate de memória, mas nada parecia ajudar a lembrar. Então senti algo pegar na minha mão e me convidar para sair da cama. Eu fui, mas não conseguia enxergar muito bem quem pegara a minha mão. Meus olhos não conseguiam abrir. Mas aquela voz era tão doce, me acalmava tanto agora... Não tive outra escolha. Senti cheiro de grama molhada, em seguida pude sentir a garoa cair sobre mim. Estava muito frio, aquela coisa envolveu seus braços ao meu redor e disse que tudo ia ficar bem, que eu iria deixar para trás toda aquela vida boêmia, de perdições, vinhos e mulheres. Inclinei minha cabeça no seu ombro, pude sentir seu seio palpitando. Ela acariciava os meus cabelos e eu estava gostando. Eu queria abrir os olhos o mais rápido possível para poder saber quem era, conhecer aquele rosto.
Depois de muito esforço consegui abrir os olhos, eles se encontraram com os olhos dela. Não podia ser... Era a coisa mais nojenta que já vi em minha vida. Aquele rosto deformado, esverdeado como limo, dentes afiados e cabelos tão vermelhos quanto fogo. Não me pareciam nada angelicais. Aquela coisa gritou comigo, dizendo que era para eu parar de olhá-la assim. Eu não pude controlar, lancei a criatura para longe, mas ela voltou caminhando em minha direção com os braços abertos. Corri para o quarto da pensão e tentei fechar a porta, mas ela conseguiu correr atrás de mim e segurar minha mão. Sua mão estava fria e suada, seu olhos me olhavam com sede, tão arregalados que pensei que fossem saltar para fora. Peguei a faca que deixo ao lado da minha cama e a ameacei. Ela não largou minha mão, e seus olhos pareciam implorar. Aqueles cabelos de fogo, oleosos e cumpridos, estavam colados no seu rosto, aquilo me assustou. Não pensei duas vezes, cravei a faca no seu peito. Aquela coisa agonizou por algum tempo, os olhos pareciam ainda maiores. Abri o armário e vi uma garrafa de vinho, aquele que eu cobiçava há um tempo. Dos meus lábios pude sentir um sorriso. Olhei para a criatura caída no chão e depois de um tempo revirando aquele corpo horrendo para ver o que poderia tirar proveito, o crânio... Ah, aquele crânio sim era encantador. E aí, serviu para alguma coisa, abrigar aquele magnífico vinho, que eu tanto cobiçava, em grande estilo. Nada melhor do que um bom crânio para apreciar um delicioso vinho. Realmente a vida não é grande coisa, então pelo menos podemos dar utilidade a morte.
Na manhã seguinte pude sentir novamente meus lábios sorrirem. Quando olhei para o lado, vi o crânio caído no chão e a garrafa completamente vazia, ao lado, a criatura morta, caída sem cabeça, mas desta vez, diferente da noite anterior, ela parecia branca como neve, vestia um vestido longo e branco, podia-se ver claramente suas curvas e depois de examiná-la, pude ver uma gargantilha de ouro exatamente igual a que eu dera a minha amada nos meus tempos de juventude, um amor quase inocente por uma virgem de rosto angelical. Peguei a gargantilha, aquele arranhão me parecia familiar... Era ela. O que o sonambulismo não faz com um homem. E naquela manhã eu pude me juntar a minha amada para sempre.
Karoliny Campos.